Assim como nós, todo filme é bom no trailer
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eus vizinhos formam um
bonito casal de surfistas... nativos ,
ambos com o sotaque típico de “catarinos” – como se diz aqui - , sotaque este que denota uma certa carga
dramática quando se expressam. Vieram nos
visitar , presenteando-nos com anchovas e
garoupas - peixes que tiveram o
destino certo: foram pra churrasqueira, devida e saborosamente grelhados.
Vieram comemorar o fim do agito, a merecida calmaria, lembrando-nos, porém, de
que ainda há os feriados da Páscoa; ou
seja, daqui a pouco, teremos mais movimento por aqui, neste lugar, nesta
paradisíaca e deserta praia que tanto, hoje, nos inspira, nos faz sonhar, nos faz
pausar – temporariamente - do
mundo aí fora. Lugar, hoje, protagonista de nossas reflexões, de nossas viagens
interiores, de nossas descobertas.
Tinham chegado ontem de Floripa, a 80km daqui,
onde levaram parentes até o aeroporto e,
aproveitando a ocasião, - já que aqui
não há um espaço para se deleitar a sétima arte - foram ao cinema, após
enfrentarem longas filas. Voltaram decepcionados com o trânsito da capital, com
o tempo chuvoso por lá e, principalmente, com o filme.
E desabafaram...foi mais um daqueles filmes de
trailer engraçado, dinâmico, emocionante e filme monótono, sem graça, fraco,
que parecia não ter fim. E eu não pude deixar de pensar ... como acontecem com os filmes dos canais
abertos aos sábados à noite...rsrsrs.
Passamos uma tarde
agradável, conversando; ele tocando violão, ela o acompanhando com a voz.
Anoiteceu, a lua chegou
linda e soberana, céu límpido, estrelas mil, brisa boa, barulho do mar ecoando. Eles se foram, cedendo aos apelos do
filho, que os requisitava insistentemente.
(..Todo filme é bom no
trailer. Claro. O trailer é exatamente um compacto das melhores partes com o objetivo de vender o produto. No caso,
convencer as pessoas a assistirem aos filmes. Nem temos o direito de acusar os produtores de
cinema, de “ propaganda enganosa”.
O tempo todo
forjamos trailers de nós mesmos.
Em um primeiro encontro, nenhuma mulher está mal
vestida, sem maquiagem ou sem uma “produção no visual ”;
nenhuma é ciumenta, insegura, chorona ou aparenta estar doida pra casar.
Nenhum cara é pão- duro,
tem pânico de relacionamento sério ou está obcecado por alguém que seja parecido com sua mãe.
Em uma entrevista de
emprego, ninguém assume ser do tipo “chega logo, sexta-feira” ou que detesta
realizar trabalhos em equipe ou que se aproveita de reuniões intermináveis para
desligar a mente e pensar em tudo, menos no
que está sendo dito ali.
Aquele que está tentando
se enturmar num potencial grupo de amigos não vai pedir dinheiro emprestado no
primeiro
programa juntos ou fazer
piada com o tamanho do nariz de um dos colegas ou ficar reclamando de tudo o
tempo inteiro.
A primeira vez que uma
pessoa vai visitar a casa dos sogros, não avisa , logo de cara, que não suporta
intromissões na sua vida e que nunca vai abrir mão de passar o Natal com os
pais.
O que todos nós temos –
não por mal, mas por sobrevivência – é uma série de trailers que revelam o que
temos de melhor, para exibirmos quando for oportuno.
Superficialmente, somos
todos seguros, bem resolvidos, desprendidos, proativos, conectados, adequados,
flexíveis, compreensivos, engraçados, inteligentes e dotados do bom e velho
desconfiômetro . Se colar, colou. Alguém vai ser convidado a assistir o filme
inteiro.
O negócio é que a vida
de ninguém está sendo dirigida por Almodóvar, pelo Scorsese, pelo Spielberg ou
pelo Tarantino. Somos nós mesmos atores e diretores, sem roteiro, sem
experiência ou ensaio. Encarregados de conduzir uma história interessante, não
por uma hora e meia, mas por uma vida inteira. E numa vida inteira, existem
certas coisas que são inevitáveis.
A convivência é um filme repleto de momentos de tédio, lentidão,
rotina e uma série de outras falhas de roteiro não previstas no trailer.
Ficando insuportável, existe a opção de mudar o filme, por que não? Mas não
mude de filme esperando que todos os seus problemas sejam resolvidos.
O cinema pode até ter produzido filmes impecáveis, perfeitos.
Mas vidas perfeitas é um produto que ainda não foi inventado. Se bater uma
vontade de trocar de canal, pense bem nas paixões que o impulsionaram a ver
aquele filme. Cogite a possibilidade de
mudar, não o filme, mas a forma como ele está sendo dirigido. Lembre-se das
suas motivações, investigue as coisas boas. Elas ainda estão lá.
Porque o cinema pode até ter produzido filmes medíocres do
início ao fim. Mas vidas inteiramente medíocres também é um produto que ainda
não foi inventado!
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A propósito, o filme a
que o casal foi assistir, não teve nenhuma indicação ao Oscar.