Dia desses fui passar a
tarde com meus vizinhos, um casal legal. Eugênia e Guilherme estão juntos há
quatro anos. São parceiros na vida e professam a mesma religião: fazer o bem
sem olhar a quem. Gosto deles e do jeito como enxergam a vida. Eles têm uma boa
energia. Rio muito com eles, aprendo muito com eles.
Pois bem, então lhes digo
que uma barata apareceu quando estávamos conversando na varanda do chalé. Minha
visão periférica flagrou o inseto vindo do gramado e entrando sem cerimônia
sala adentro. Pensei em alertá-los, engoli. A barata desviou-se no chão, perto
da estante recheada de livros, verdadeiras relíquias. A mexicana Frida Kahlo –
a heroína de Eugênia - ali estava em livros, gravuras, citações em quadros e
bem explica a essência e uma certa melancolia, dela, o seu quase sempre estado
de espírito. Ali se encontravam também os três volumes de A história da
Sexualidade, de Michel Foucault, o que poderia bem justificar (e a ela remeter,
denunciando-a) o porquê de a sensualidade “virar protagonista” sempre.
Desviando o meu olhar
daquela estante - que instigava-me à curiosidade-, anunciei à anfitriã o que
estava vendo, nutrindo a convicção de que ela sairia correndo porque essa minha
amiga, evidentemente, não faz o tipo de mulher que mata barata. Surpresa,
observei quando ela, Eugênia, calmamente se levantou, tirou o All Star que
usava e, sem titubear, deu um cascudo “de macho” no bicho. Feito isso, voltou
para a espreguiçadeira, pegou o copo com o detox – um tal suco verde
desintoxicante que estava tomando - e disse: “Eu mato, mas não cato. Tenho
verdadeiro pavor ! Depois o Gui cata”. Bem, a meu ver, o simples impulso em
esmagar o inseto, já seria, em si, um ato heroico, surpreendente!
Lembrei-me de quantas
situações embaraçosas passei por conta de baratas, sempre ao redor de pessoas
que ficavam embasbacadas com minhas atitudes. Elas, as baratas, pareciam me
perseguir, pareciam sentir o meu pânico por elas. Hoje , já muito me controlo -
apesar do nojo-, ao me deparar com elas. Com certa frieza e tranquilidade,
consigo matá-las e tirá-las do meu campo de visão.
E quantas explicações
existem supostamente plausíveis sobre tais reações.
Certa vez mergulhei na
leitura de Kafka, com sua Metamorfose, uma crítica à sociedade moderna e à
desumanização social, na qual coloca o personagem Gregor Samsa que, ao se
transformar em algo horrendo e fora dos padrões, é excluído da sociedade, sendo
forçado aceitar o que virou, desumanizado – uma barata. Dessa incursão minha à
densa leitura kafkaniana até um certo dia em sala de aula, enquanto aluna de
literatura de uma certa interessante professora, na faculdade, relembro-me de
quando fui pega de surpresa por uma barata "voadora" aninhando-se em
minhas indomáveis madeixas. E pra cima de mesas, cadeiras e pessoas, parti eu
aos berros histéricos, dependurada entre pilares, quase no teto! A professora
cravou os olhos sobre aquela cena patética e também sobre mim, fazendo ali,
sucintamente, a tradução fria, talvez cruel, sobre ao que ela assistia,
estarrecida. E disparou-me: “Quantas coisas reprimidas há em você... Todas
estas coisas estão ali – apontando-me ela com o dedo em riste. E aquela barata
está dentro de você”. Aquilo me deixou ainda pior! Me senti uma barata! No
sentido real, no sentido figurado, na metáfora. Aquela frase ecoou um bom tempo
dentro de mim, ressonando, irradiando e dando pistas de que somente eu poderia
“desrotular” o que aquela Mestra imprimira em mim em tom profético. E foi ela
que, com aquele jeito - na época, traduzido por mim como insensível - me ajudou
a entender certas coisas, tempos depois rsrsrsrs.
E depois disso, ao lado de
pessoas pela vida afora que me acompanharam e com quem partilhei boas
histórias, pude constatar que nenhuma delas matavam as asquerosas e ainda
pareciam se comprazer do estado em que eu ficava. Pareciam ora ironizarem ora
se divertirem com a visão de tamanha mulher na frente deles (e do inseto) -
aparentemente tão destemida- ser tão assombrosamente medrosa!
E lá estava o Gui naquela
tarde, descontraído, pouco estudado, um sujeito simples , com uma certa
rudeza-surfista em boa parte do seu tempo- a retirar discreta e rapidamente a
barata de circulação pra brindar Eugênia -renomada profissional na área da
saúde-, com sua atenção, preocupado e cheio de zelo, em não desestabilizar a
harmonia da sua amada e do ambiente.
E eu pensava com meus botões
o quão bacana é a sintonia dos dois, a sintonia daquele casal naquela simples
tarde entre montanhas, areia, céu azul, mar batendo forte nos rochedos, entre
profusão de verdes...uma tarde em que se revelavam, nos pequenos detalhes, pequenas
sincronias e grande percepção de pessoas tão diferentes que, entre olhares e
gestos, traduzem um bem-querer comovente, que faz calar certos questionamentos,
que refreia qualquer tipo de julgamento.
Seja o que for, apesar da
divagação sobre a aparição- relâmpago da barata naquele descontraído momento,
já não tenho pânico nem asco por elas...acho que a vida se encarregou de, se
não sanar certos pavores meus, me dar condições de enfrentá-los, com admirável
coragem, coragem essa que, às vezes, até me assusta!
E experimentava eu, naquele
momento, entre risos, o tal detox- estranhíssima “mistura-poção-mágica” de
vegetais dessa minha amiga-, e refletia apenas , enquanto ela tagarelava
teorias, que a vida é mesmo para os fortes ....definitivamente a vida não é
feita para os excessivamente sensíveis! Rsrsrsrsrs