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la adorava a quarta-feira.
Dia da semana em que ele, o marido, sentava-se diante da tv, totalmente
absorto, fascinado diante da partida de futebol, fosse ou não o dia do seu time jogar. Era o dia em que ela
desfrutaria de duas horas só para ela. A cada quarta ela inventava uma coisa
diferente, intercalando lazer e cultura dentre outras atividades, com a única
finalidade de não sucumbir à rotina de um casamento morno - uma relação que se arrastava há quase vinte
anos. E fazia isso com muita propriedade: as horas antecedidas ao jogo eram
previamente curtidas por ela, que já antevia momentos de particular deleite. A
sós, com ela mesma.
Quarta-feira era o dia em
que ela migrava pra outro planeta: o planeta das mulheres – e cá entre nós, um lugar que só nós, mulheres,
muito bem sabemos ser de difícil acesso a homens dotados de
pouca ou nenhuma sensibilidade.
Pois bem, naquela noite de
quarta, resolvera ela se dar uma
“repaginada” em sua aparência.
Já em seu quarto,
direcionou-se ao espelho. Viu-se “apagada”. Decidiu-se por dar uma
certa cor ao rosto meio sem vida, testando um novo tipo de maquiagem. E
pincelou cores, delineou traços, iluminou faces, sombreou olhos, coloriu
generosamente os lábios de carmim.
Olhava, agora, indecisa, ora para o Vermelho Ivete ora para o Sensual. Optou
por usar os dois, uma camada sobre a
outra.
Depois de décadas usando as
cores de esmalte ao estilo “misturinha”, os tons neutros, resolvera naquela
noite ousar, pintando as unhas de
vermelho. E vibrou de alegria ao ver as mãos maduras agora joviais, ágeis.
Ágeis o suficiente para dispararem atrás de acessórios que as poriam ainda mais
exuberantes – mãos e unhas! Achou em uma das inúmeras gavetas do
armário, o exótico anel que ganhara da avó: mesclava a cor do rubi e a da esmeralda
com o dourado; era ricamente adornado de minúsculas pedras verdes que
brilhavam ofuscantes em torno da pedra
imensa vermelho-sangue, arredondada. Ao
colocá-lo, sentira-se hipnotizada
durante longos momentos, experimentando uma felicidade de menina,
fascinada com suas mãos. Fora em busca,
a seguir, das pulseiras em tons de cobre, também trabalhadas, que
incrementariam a produção. Uau! Perfeita produção!
Então, colocou o vestido de
tafetá preto, cheirando a guardado, que lhe evidenciava a boa forma física.
E borrifou o perfume sobre si, deixando
no ar uma tênue “nuvem” que revelava notas delicadas de gardênia.
Deslumbrou-se diante da
visão que o espelho lhe revelava. Sentia-se, agora, dotada de um certo poder que há muito já não o sentia.
Subitamente, fora arrebatada
por uma rara vibração. Ao som da
Valsinha, de Chico Buarque,
começara a dançar, a rodopiar, a sonhar.
A imagem de Pedro, bem mais jovem que ela, veio acompanhá-la naquela
desmedida emoção.
Pouco se falaram, muito se entenderam. Nunca pensara
em trair o marido, gostava dele, não mais com o ardor dos velhos e bons tempos.
Mas era Pedro quem incendiava, agora, a sua imaginação.
Ambos providos de muitas coisas em
comum, com estilos de vida bem parecidos, com o mesmo gosto musical; ambos do
mesmo signo zodiacal, com o mesmo ascendente...tão poucos momentos juntos para
se descobrirem tão únicos e tão pertencidos um ao outro! Ela sentia o coração
descompassado ao se remeter ao “olhar de precipício” do rapaz, na ocasião em que se despediram, após um encontro
rápido, porém eloquente. Pareciam se conhecer há séculos, ambos tendo a
convicta sensação de que iriam, um dia,
se “toparem” novamente. Para eles, a
diferença de idade era irrelevante, um detalhe apenas , pequeno descompasso.
A voz do marido, amolecida
pelo álcool, trouxe-a de volta a Terra:
- Benhêêê, pega mais uma
cerva gelada pra mim?
Levou a cerveja gelada até a
sala, onde o marido encontrava-se
esparramado no sofá, com a imensa barriga à mostra. Ele a agradeceu,
observando a mulher de forma incomum. E, curiosamente, reparara na sua
transformação, no brilho do seu olhar. Elogiou-a. Puxou-a para si. E selou sua
boca na dela por alguns segundos.
E durante aqueles segundos, ela sentiu-se em Vênus.
Sentia agora a boca de Pedro na
sua, o olhar de Pedro - aquele bendito olhar de novo! - a consumi-la,
a presença trepidante e juvenil de Pedro, ali com ela.
E juntos, ela e o
rapaz, sorriam e dançavam a coreografia
dos amantes, naquele momento, alheios a
tudo. Deixavam-se, ali, embalar pela linda cantiga de Chico, inebriados pelo
luar que atravessava as grandes janelas envidraçadas da sala, ensurdecidos pelo retumbante tamborilar de
seus corações, deslumbrados com o
frescor das novas descobertas, entorpecidos pelo perfume de gardênia com
“sabor” dos inesquecíveis tempos de infância feliz.
Ainda no sofá, de frente pra
televisão, olhos em transe,
encontrava-se o marido, vibrando de forma animalesca com um gol de mais
uma partida de futebol, em mais uma quarta-feira...naquela linda noite de
verão, de estrelas cadentes e luar cúmplice.