O
|
amanhecer
veio úmido, frio, sombrio. O mar trouxe ondas altas, muito altas, com quase
três metros de altura. A natureza tingiu-se de cinza e tudo a nossa volta ficou
sem alegria, sem vibração, sem o cenário habitual. A chuva chegou torrencial,
sem trégua, há dias.
“Abro a janela e eis que, em tumulto, a
esvoaçar, penetra um vulto:- é um Corvo hierático e soberbo, egresso de eras
ancestrais, como um fidalgo passa, augusto e, sem notar sequer meu susto, adeja
e pousa sobre o busto - uma escultura de Minerva,bem sobre a porta; e se
conserva ali, no busto de Minerva,empoleirado e nada mais”. Esse trecho, de
Edgard Allan Poe, revela um momento depressivo do autor quando se vê assolado pela lembrança da amada Leonora que
já não está com ele, o que lhe traz sentimentos doloridos. O corvo sinaliza algo
nefasto e encerra-se a “litania”, nos últimos versos, espantando a sua dor com
um “nunca mais”.
Abri a janela: primeiro veio um, depois
outro e mais um terceiro corvo no gramado, frente a janela, no amanhecer sem
cores vivas, com um vento absurdamente pesado. Eles ali, enormes, um deles com
as asas imensamente abertas.
Há
décadas não via corvos. Não há nada que pudesse induzi-los a ficar por aqui.
Nunca gostei de corvos, tenho vários momentos cruciais em que topei com eles,
independente da iminência de possíveis “carniças”, eles me trouxeram aperto no
peito... Mas, dizem, eles são necessários, independente de sinalizarem, para muitos, um mau agouro.
Nem sempre os dias serão coloridos, nem
sempre tudo serão flores, nem sempre alegrias e felicidade serão uma constante em nossas vidas.
Há
que nos prepararmos para dias menos vibrantes, sem cores, dias em que a nossa
alma se sente de luto, sem, muitas vezes, termos nós algum motivo palpável para
tal sentimento.
Dias assim tanto podem nos servir como um convite a uma boa leitura, a
bons filmes, a boas e intermináveis conversas regadas a um bom destilado, a
aconchegos com alguém interessante, à reflexão, à conscientização de que tudo é
perene. Mas se estamos entristecidos, de mal conosco, ou propensos a esperarmos
algum tipo de sinal da natureza, alguma resposta do divino, a tendência é
fazermos de um dia como esse um momento de desalento, de agonia, de uma certa
melancolia um tanto nefasta para o nosso espírito - que abriga a nossa alma -,
nos aprisionando a algo que transcende a
nossa razão.
Há que ser forte, é imprescindível saber
viver da melhor forma possível, superando momentos difíceis... isso requer um
exercício disciplinado, extremamente disciplinado do nosso espírito para que a
nossa alma se aquiete, se harmonize, se console, se liberte de qualquer
opressão que a ela possa se sobrepor.
Meus cães desataram a correr pra cima dos
grandes pássaros negros, latindo, fazendo-os debandarem-se daqui pra longe, bem
longe daqui.
Eu mentalizo a cor lilás, a cor do amor,
abrandando a turbulência da minha alma com imagens boas, quadros pincelados de
alegria, trazidos à tona pela minha memória afetiva.
Congelo imagens da infância boa, preencho
possíveis “vazios” com “Casamento Grego” – visto inúmeras vezes - que muito
lembra a minha família. Revejo cenas familiares na trama tão parecida com o que
vivi, apesar da ascendência diferente, de alguns costumes diferentes. Identifico-me com a essência de Tula,
personagem principal, me emociono. Sempre me emociono com esse filme.
Finalizo, colocando um DVD com músicas de
nacionalidades distintas. Concentro-me
em três delas: uma, grega, aquela em que se quebram pratos no final, que me faz
extravasar emoções; a outra, árabe, que me induz a descortinar novos horizontes;
a última, tarantella, me faz sentir uma
alegria descomunal. Danço de
frente ao espelho cada uma delas, com “coreografias” distintas, repetidas
vezes, à exaustão, espantando o frio, fortalecendo o meu espírito, aquecendo a
minha alma.
Depois, percebo uma nova cor em mim, me
descubro dotada de um certo poder.
Jogo-me ao chão com meus cães esfuziantes. Recomponho-me. Devoro um camarão
gigante, fresquinho, lindamente preparado por Zeus. Tasco-lhe um beijo estalado, como reconhecimento
da gentileza, da atenção. Despejo
palavras no Pc, devidamente acompanhada por um Frangellico. Sinto o torpor do bem, o calor da vida
pulsando em mim, sinto-me revigorada.
Celebro o melhor da vida: o meu presente, o
meu hoje.
Crio coragem e, audaciosa, dou um enfático
adeus pra tristeza que tentou, sem sucesso, uma possível aproximação
comigo: aqui não há vaga pra você, sua vilã! À porta do meu coração você não
bate meeeesmo! Não se atreva a voltar! Nada mais tenho a lhe dizer...até nunca
mais!