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ste texto poderá servir como réplica ( ou uma homenagem!) aos desabafos ( e conjecturas) do meu filho,
no auge dos seus vinte e poucos anos.
(...)
“Talvez fosse melhor
dizer que os tempos são: o presente do passado; o presente do presente; o
presente do futuro. E eles estão na
alma: não os vejo em outro lugar. O presente do passado é a memória; o presente
do presente é a percepção; o presente do futuro é a
expectativa.” Santo Agostinho
A citação acima, dentre
tantas outras milhares de definições
sobre o tempo, é a minha favorita.
Sem falar das de Fernando Pessoa - mereceria um capítulo à parte- que tão sabia e inteligentemente discorreu em
suas poesias sobre a transitoriedade das coisas, sobre a passagem do tempo.
Cada um de nós carrega
dentro de si certa noção e importância do tempo em suas vidas. E cada qual tem a sua percepção do que
significa a passagem dos anos na alma,
na memória, no corpo: a
consciência do tempo cronológico e do psicológico. Em algum momento nos
deparamos com essa consciência quer seja na transformação física, em algum
tipo de limitação, nas dores; quer seja nos questionamentos, nas respostas,
nas incertezas, nas dúvidas, nas angústias, nas celebrações, nas ausências e por aí vai...
“O tempo é o senhor da
verdade” – quem já não ouviu essa frase e sentiu (ou vivenciou) a carga (ou expectativa) que ela carrega?
Há muito a se falar do
tempo. Ainda mais nos tumultuados dias atuais, onde ele vale ouro já que a
máxima - louvada com fervor - é “viver
intensamente cada momento, porque a vida é uma só.”
Como observadora que sou,
percebo nos mais próximos ( e também em
mim!) o que ele, o tempo, tem feito - num conceito mais amplo - como agente
transformador.
(...)
Há pessoas que endurecem com
o passar dos anos e não mudam mais.
Para que o tempo
“transforme” é preciso deixá-lo agir sobre nós.
A passagem do tempo me fez
entoar a mesma canção, a minha canção de modo
diferente( ele modifica a nossa
”voz”, entendida como a nossa expressão no mundo). Ele me fez menos ilusão e
mais precisão. Ele me impulsionou a jogar fora algumas coisas, fez nascer outras tantas. Esse
tempo tem uma qualidade diferente, é um tempo de conexão. Não é um
período em que fiquei de braços cruzados. Descobri que a raiz da
palavra ofício é ophicium, termo agrícola para cuidar da terra. O tempo
de conexão é isso: cultivar o que quero
que germine.
“Vi que o tempo trabalha
sobre a árvore e ela vira árvore”- disse
o poeta. E eu quero ser como uma árvore.
A relação com a
temporalidade depende das fases da vida. Na primeira fase da vida, corremos
junto com o tempo, não queremos que ele nos pegue. É como se fôssemos os
primeiros da maratona: o tempo está no nosso calcanhar e queremos vencer a prova. ..
Depois dos 40, 50 anos,
deixei o tempo passar à minha frente. Não tenho mais medo dele e digo: Passa,
tempo, passa, porque você me transforma e eu não fujo de você. Sei que meu
tempo vai acabar um dia. Então, parei de
correr dele e comecei a contemplar as
experiências acumuladas. Nessa fase que me encontro, meu grande objetivo é silenciar a mente para
aguçar a percepção imediata. Acredito que as
pessoas que fazem isso envelhecem sem desespero e não dissimulam nada
(nem escondem a idade! rsrs). Elas são
mais íntegras, dizem a verdade e têm uma sabedoria estável da vida, já que se dispõem a prestar mais
atenção a coisas, que para muitos, seriam irrelevantes; para essas pessoas,
seria a motivação maior para uma grande transformação em suas vidas.
Mas sempre haverá conflito permanente entre ação e
contemplação; a obsessão pela ação é
inútil se não houver uma conexão. É o caso de quem fica atrás de muita
diversão, ou mesmo de religião, ou
qualquer outra ação que a faça achar que “não está perdendo tempo”,
achando que está fazendo alguma coisa - pois a ação, sabemos, é supervalorizada
hoje em dia.
No entanto, essa questão
também tem a ver com a idade. Não acho que quem tem 20 anos deve passar o dia
contemplando,mas quem tem mais de 40, 50
anos precisa encontrar tempo pra ficar quieto, prestar atenção, olhar o que
acontece em volta. Porque vivemos de uma
maneira maluca, somos condicionados a nunca parar de acumular. Juntamos de tudo: dinheiro, conhecimento,
experiência, sons, doenças, palavras, marcas, traumas, mágoas...Chega uma hora
em que temos que fazer a curva, começar a abrir a mão, jogar o que não serve,
dispensar, delegar, priorizar. E também nos esvaziar de um monte de vozes, de
discursos, de saberes. Isso serviu pra
me trazer até aqui, mas é preciso se abrir para outras percepções, já que o acúmulo só atrapalha. Eu observava minha pilha de coisas como se aquilo fosse
a minha vida...mas a vida não é só isso.
Ao nos darmos conta disso, mudamos a inserção do tempo.
O grande desafio é lidar com
o tempo que temos, ter prontidão para
agir agora. Deixamos de viver o presente
por estarmos muito apegados a um passado.
Se esse passado foi muito melhor
que o nosso presente e, insistentemente,
nos remetemos a ele, o crescer pode ser
difícil, um terreno até perigoso, atravanca
as melhores possibilidades de sermos mais felizes e, consequentemente, nos blindamos de possíveis desafios gratificantes,
edificantes, que forjariam um percurso promissor. Se o passado é pontilhado de
agruras, sofrimentos, privações - e nos detivermos nisso - podemos nos tornar
adultos com recalques de toda a sorte.
Ambas situações não
nos permitem renovar, seguir em frente. (...)
E há ainda aqueles ocupados
em projetar e acumular coisas pra viverem num futuro ilusório, alimentando
grandes expectativas sobre o amanhã, tão incerto.
É preciso que sejamos
honestos conosco mesmos hoje, porque as mudanças acontecem
agora. Amanhã poderemos não ter a mesma chance. Se quero fazer algo construtivo e amoroso, tem que ser
já: esse é o antídoto para muitos possíveis sofrimentos.
Olho para uma foto minha –
recente-, sobre a mesa, enquanto despejo palavras no PC. Ainda me reconheço nela. Constato que o tempo
até foi generoso comigo. Talvez porque eu não tenha sido adepta do
“deixa a vida me levar!”-não sei. Ou
porque tive a sorte de poder reverter o
tempo a meu favor, com todas as minhas
limitações e possíveis dissabores.
Sei que o tempo me fez adquirir uma certa, digamos,
coragem, para enfrentar (e entender!) o óbvio: todos nós temos um prazo de
validade. E a única certeza que tenho é
que tem valido a pena cada momento vivido.
Então encerro, meu querido filho, com mais uma
definição sobre o tempo, através do trecho de uma canção
que adoro e que reforça, em mim,
a importância de viver apenas o presente muito bem vivido e seguir em frente,
abastecida do bom passado. Sem mais me
deter em coisas que não podem voltar a ser
o que foram um dia ou que já não têm o
mesmo valor que um dia tiveram pra mim. E sem mais lutar contra o
imutável:
“Se lembra quando a gente
chegou um dia a acreditar que tudo era pra sempre, sem saber que o pra
sempre sempre acaba?” Renato Russo