Família é sempre bonita em álbum de retrato
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desânimo havia tomado
conta, depois de ela ter perdido o celular, sofisticado, comprado a prestações.
Depois veio a avó, atazanando as suas
ideias, falando mal de sua mãe,
comparando-a com ela, claro, com o
mais sombrio dela. A avó sabia
bem como transformar um dia possível em um dia impossível de se viver em
harmonia , ao despejar as mágoas em relação à filha pra cima da neta. Para completar, tinha visto o menino por
quem se interessava , de mãos dadas com
outra garota.
É, o mar realmente não estava pra peixe. Mas ela tirou forças
pra fazer o que tinha que ser feito, a tarefa que lhe cabia: lavar as suas
roupas.
Sua mãe a abandonara e fora embora com um namorado bem mais
novo. O pai, não o conheceu, morrera quando ela tinha dois anos de idade...enfarte fulminante quando assistia a
uma partida de decisão de um clássico do
futebol, FlaFlu.
Tinha dez anos quando foi morar com os avós maternos, donos de
uma mercearia. Não podia reclamar da
vida; a despeito da mãe e das rabugices
da avó, tinham uma vida até legal, moravam num bairro bom, perto da praia. Os
conflitos existiam e nessa sua família, cercada de tios e primos, pôde conhecer
sentimentos diversos ...inveja, ciúme,
rejeição, solidão, falsidade...algumas ciladas da vida, dentro da própria
família. Não guardava mágoa, carregava
apenas uma certa tristeza na alma que ela conseguia
driblar, ocupando-se com coisas que lhe
davam alegria, sempre!
Contava com 16 anos,
cursava o Ensino Médio de manhã e três
tardes por semana cuidava de uma criança de 6 anos – adorava
crianças!- , filha de uma amiga da avó. À noite, fazia cursinho para o
vestibular, graças a uma bolsa da Prefeitura local – queria cursar Comunicação. Sonhava sair da cidadezinha um
dia, morar sozinha, ter uma outra vida. Queria ver outras coisas,
descobrir o mundo. E, principalmente, sonhava,
um dia, reencontrar a mãe.
Naquele dia, acordara de
mal com ela mesma. Cheia de espinhas, menstruada, cabelos horríveis. Pensava ...um dia vou procurar um
médico moderno, como o tal Eusimar Coutinho, vou ter dinheiro suficiente pra não mais querer sangrar todos
os meses...Ela ficou sabendo do tal médico, assistindo ao programa da Marília
Gabriela, em cuja entrevista ele discorria sobre a técnica adotada por ele de
interromper a menstruação e os benefícios para a mulher ao optar pelo método:
uma vida muito mais saudável e feliz. A avó lhe dizia que não se deve contrariar as leis da natureza, que isso
não era de Deus etc e tal.
E ela continuava com os
seus “planos” que também incluíam uma ida a uma dermatologista famosa, a tal
Villarinho, de São Paulo.
Aí, sim, estaria pronta pra
abafar...livre das “regras “ – e de uma gravidez indesejada -, da acne,
da caspa, dos cabelos sem um bom corte...e se tornaria uma diva, pronta pra
arrasar junto a um “boy magia”, cheio de encantos, paparicos, um príncipe
montado na grana.
Mais pra frente, talvez passasse por uma lipo pra eliminar o
pneuzinho que insistia em sair pra fora
do jeans de cintura baixa, quase no quadril.
Agora, enquanto estendia as
roupas ,naquela tarde de sol
quente e vento nordeste, imaginava lindas roupas novas substituindo as suas,
feitas por sua avó, também exímia costureira, porém de gosto aposto ao dela
...um diploma, um bom trabalho, pequenos luxos, sua independência financeira,
baladas nas noites quentes da capital...
Um assovio vindo do portão a desconcentrara dos seus devaneios.
William, o colega de cursinho, chamava-a insistentemente para a realidade. Moço
lindo, dentes de artista, corpo de Apolo,
de família boa, inteligente,
perfeito pra ela não fosse ele gay. Poderia ser um ótimo amigo, apenas.
Vinha abraçado a um livro, *De Profundis, de um tal Oscar Wilde.
Ela quis perguntar o significado do título , mas achou irrelevante naquele
momento, mesmo por que ele iria divagar e divagar e desconcentrá-la de sonhar. O
propósito da sua vinda até a casa dela era convidá-la pra uma palestra sobre
Sustentabilidade, sugerido por uma professora de Ciências...eles tinham que se
inteirar sobre os possíveis temas mais
abrangentes das provas discursivas do Vestibular. Daria resposta a ele logo
mais...
Ele a elogiou, achara-a mais
bonita...ela relevou. Pra ela, o
elogio dele não servia pra “engordar” a
sua autoestima.
Despediu-se, retornando ao quintal. Acabara a tarefa. Pegou a mangueira de água pra se refrescar do
calorão.
Deu ração à cadela Fany,
com a qual brincou por alguns momentos, colocou o CD da sua Amy ...dançou frente ao espelho da sala a música
Valerie, a sua preferida, por bons e longos momentos e viajou. Viajou,
sonhando sonhos possíveis pra ela.
Não pensava agora no
garoto que um dia gostou muito, na “pegação de pé” da avó, no celular perdido..pensava apenas
em aproveitar cada momento pela frente.
Olhou para o retrato da mãe na estante. Como era linda! Como era
diferente da mãe! Admirava a coragem dela. Não guardava mágoas, mas sentia uma
falta imensa daquela mulher ...na
maneira que penteava os seus cabelos, nos afagos, no jeito que a mãe a olhava,
na voz dela, terna, a contar-lhe
histórias, no bolinho de arroz que só ela sabia fazer, no bolo de chocolate
cheiiinho de granulados todo santo domingo, sobre o fogão.
Na foto, a mãe sorria,
envolvida pelos avós, por ela, pelos tios. Usava um vestido de renda branca, o
mesmo vestido quando a viu pela última vez e dela recebeu
um longo e envolvente abraço.
Dolorida lembrança. Apenas pensava...Família é sempre bonita em
álbum de retrato. Virou a foto pra baixo, saiu da sala e voltou para o quintal.
Queria surfar, não podia. Tinha uma vontade imensa agora de pegar o tabletão de chocolate bem guardado ( escondido!) e devorá-lo, mas
lembrou-se das espinhas e do pneu na cintura. Freou bravamente os impulsos.
Olhou pra longe, avistou a imensidão do céu anil, o horizonte de
sonho, pegou uma manga do pé e disparou a
correr atrás da Fany, a sua melhor companheira, a amiga de todas as
horas.
Deletou a tristeza, afugentando qualquer tipo de mau sentimento. E apenas disse a si mesma que se ocuparia em
ser feliz.
*De Profundis é o título de uma obra de Oscar Wilde,
escritor irlandês, de 1897,
que toma a forma de uma longa e emocional epístola
épica ao seu amante Alfred Douglas, escrita na prisão de Reading,
onde cumpria pena de prisão por comportamento indecente e sodomia.